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Ecos do Silêncio

por Gabriel Flores, ator, diretor e dramaturgo.
Publicado em:
11/11/2024
A imagem mostra um retrato de um homem jovem com cabelo ondulado e barba curta. Ele veste uma blusa preta de gola alta e está posicionado contra um fundo escuro, que destaca seu rosto. O olhar do homem está direcionado levemente para a esquerda, e sua expressão é contemplativa, dando um ar sério e artístico à foto. A iluminação é suave e enfatiza as feições do rosto, criando um contraste elegante com o fundo.
O artista ficou em cartaz com a peça premiada Latitudes  dos Cavalos no Teatro do CCJF durante o mês de agosto.

"É impossível tratar de relações amorosas por um viés masculino e heteronormativo, usando de memórias e desejos pessoais, sem esbarrar em padrões de comportamento inadequados, repetições provocadas pela observação deste mundo masculinizado, hábitos que ferem, distanciam, silenciam."

Conceitos arraigados no imaginário coletivo são como hidras, com suas cabeças infinitas e sua insistente capacidade de renovação. Acreditamos, tolamente, já entender ou dominar certas ideias por simplesmente concordar com elas — parto do pressuposto que nós, enquanto comunidade global, já entendemos que “machismo é ruim”. Mas por que é ruim? Como e quanto é ruim? Quais as tantas e imprevisíveis sequelas adquiridas por simplesmente estar vivo numa realidade tão patriarcal quanto essa nossa estranha modernidade?

 

Claro que é impossível não adereçar as mulheres, as principais vítimas desse machismo desenfreado, desse mundo violentamente regido pelos excessos, pelos números, pela eterna busca de algo que sequer existe. Os números de feminicídio e assassinatos de pessoas LGBTQIA+ no Brasil continuam vexatórios, estabelecendo anualmente os piores recordes que qualquer povo gostaria de ter para si. É fato que a impunidade historicamente conferida a nós, homens, os responsáveis por esses números, permite que isso persista.

 

Aqui, porém, peço licença para apontar, muito brevemente, outra faceta desse mesmo machismo, que faz dos próprios homens vítimas, seres moldados por um imaginário que os formata, os lobotomiza, os obriga a serem mantenedores desse horrível status quo. E como isso nos atravessou, sem pedir licença, no processo criativo.

 

Criar o espetáculo “Latitudes dos Cavalos” e inserir o tema da masculinidade em cena esbarrou nessas interrogações do primeiro parágrafo. É uma peça que não teve sequer a intenção de tocar nesse assunto, originalmente. O dispositivo inicial de criação era outro, mas como em toda criação artística em que os criadores se colocam disponíveis para se surpreenderem com as palavras e caminhos pelos quais começam a navegar, fomos lentamente incomodados por esse tema tão urgente quanto espinhoso. Hoje, acredito que tenha sido um caminho bastante natural. É impossível tratar de relações amorosas por um viés masculino e heteronormativo, usando de memórias e desejos pessoais, sem esbarrar em padrões de comportamento inadequados, repetições provocadas pela observação deste mundo masculinizado, hábitos que ferem, distanciam, silenciam. Esse último, em especial e cada vez mais, me soa como uma das leis máximas do masculino: o silêncio. 

 

Como de costume, ao propor essas ideias, sei que a primeira referência é a de um homem mais velho, durão, que “engole o choro” e não divide nada com ninguém. Os clichês, porém, costumam ter um fundo de verdade. E há de se pensar que esse homem foi jovem um dia; que foram anos de privação, de uma castração autoinduzida e de muitos impulsos contidos que o transformaram nessa figura caricaturada. E a juventude masculina persiste, mesmo hoje, mesmo em círculos com um suposto entendimento das chagas do machismo, a perpetuar esse voto de silêncio, esse acordo não-verbal tecido entre os homens que os impede de falar com seus amigos sobre angústias, de expor para seus familiares seus rancores, de falar com suas mulheres amadas sobre as menores das inquietações. De expor seus desejos, que muitas vezes nem precisam se consumar, mas são legítimos. Que não necessariamente definem quem se é, mas certamente compõem essa amálgama de tantas coisas que se pode ser.

 

Entre outros impulsos estéticos e pessoais, colocar em cena dois personagens, dois homens, dispostos a falarem por 90 minutos sobre seus medos e anseios e, mais do que isso, disponíveis a ouvirem o outro, a — literalmente — se colocarem no lugar do outro, representa, para mim, um símbolo do que a masculinidade pode ser. A possibilidade de criar uma zona segura, naturalizar o afeto entre homens, desmitificar o simples toque, tão cheio de estigmas, de um corpo masculino em outro semelhante. A possibilidade — talvez muito otimista, mas espero que não utópica —, de conceber um terreno livre de pensamentos tão hostis e predatórios.