Trilhando Afrocuidado: uma proposta ancestral do bem viver
"O autocuidado para mulheres e homens negros é uma urgência de vida, frente ao racismo estrutural que nos adoece e mata todos os dias. Partindo desse incômodo, entendi a necessidade de ir além do discurso, era preciso colocá-lo em prática."
Olá, sou Giovane, filha de José e Maria, nascida em Duque de Caxias, Baixada Fluminese, sagitariana e feliz por ser uma mulher preta. Sou, existo e re-existo pois carrego em minhas entranhas, os afetos, saberes e encantamentos de minhas ancestrais. Em 2019, criei a Rede Makeda, um afroempreendimento de saúde e bem-estar baseado em terapias de autocuidado afrorreferenciadas. Como bióloga e também terapeuta integrativa, percebi na minha jornada que o autocuidado para mulheres e homens negros é uma urgência de vida, frente ao racismo estrutural que nos adoece e mata todos os dias. Partindo desse incômodo, entendi a necessidade de ir além do discurso, era preciso colocá-lo em prática.
E assim, em 2023, nasce o Projeto Trilhando Afrocuidado, como uma proposta de cuidarmos de nós, entre nós e por nós. Para além da terapêutica, também é uma proposta de celebração dos nossos corpos e uma forma de agradecimento aos nossos ancestrais que nos deixaram saberes e práticas singulares, que além de tudo, alicerçam o autoconhecimento, promovem autoestima e fortalecem o autocuidado. E por isso, por aqui, chamo de afrocuidado. Afinal, é no movimento de Sankofa — estratégia da população negra para lidar com o racismo e o colonialismo, buscando recuperar a identidade pessoal e coletiva — que Orí-entamos nossos cuidados. Assim, reverenciamos quem veio antes, ou seja, aqueles que construíram as trilhas para que nossos passos de hoje sejam firmes na construção de um futuro mais igualitário.
Na cosmovisão africana, autocuidado não é um ato solitário, mas um cuidado inteligente de si, do outro, do território em que vivemos e da relação com todas as formas de vida do ecossistema local e global. Como diz Bell Hooks, autora, professora, teórica feminista e ativista antirracista estadunidense: “raramente, se é que isso que acontece, nós nos curamos em isolamento. A cura é um ato de comunhão.” A trilha do afrocuidado é matriarcal e circular, compreendendo que o bem viver coletivo inclui práticas sustentáveis, respeitosas das naturezas, com impacto social e ambiental. E, por esta razão, os cuidados terapêuticos do Trilhando ficam nas mãos de mulheres pretas e indígenas, que trazem consigo, as medicinas ancestrais. A circularidade do cuidado vem do útero, do lugar do gestar e criar potencialidades que não se encerram, se nutrem a cada volta em torno do cuidar e do bem viver.
Quando desenhei o Trilhando, foi pensando no bailado das matas, nos sons das correntezas de um rio, nos aromas que rememoram o cheirinho de casa de vó e no tanto de cura que esses lugares guardam. É assim que começa o acolhimento quando os participantes chegam para passar um dia inteiro imersos no afrocuidado. O Trilhando inicia-se no sorriso, afetos e na recepção com café da manhã, porque é no compartilhar do café que as barreiras vão se desfazendo e a alma se prepara para estar leve, desperta para todos os sentidos, receptiva ao toque terapêutico, para escuta amorosa, para o compartilhar de vivências. As dimensões do afrocuidado vão além do corpo físico, atingem outras camadas de cada um de nós, de quem recebe e de quem cuida.
Como trilha de afrocuidado, cada participante compartilha o cuidar de si e o cuidar de outro. E no modelo de circularidade, os participantes passam por estações terapêuticas de cuidado, que incluem momentos de relaxamento e bem-estar, além das trocas nas rodas de conversa e oficinas. Bem viver também é geração de renda e o Trilhando pauta pela economia criativa com presença de afroempreendedoras artesãs com suas criações, exibidas durante todo o evento. Por falar em autoestima e beleza, no Trilhando também acontece o desfile de moda sustentável afropindorâmico, com modelos que incluem participantes do projeto. E depois de um dia inteiro cuidando de si, nossos participantes caem no samba, porque o Trilhando só encerra quando a roda de samba acaba! Brindamos nossa existência, cantamos, dançamos, celebramos e agradecemos a ancestralidade por existirmos!
E tudo isso só é possível, porque três amigas parceiras acreditaram no meu sonho e, juntas, organizamos essa grande TRILHA! Gratidão Cristiane Mendes, Ana Lourenço e Priscila Teodoro.