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Quando é o depois do não?

Por Natasha Corbelino, atriz, produtora, autora e diretora teatral. Diretora da peça Carne de Segunda.
Publicado em:
10/04/2025
Mulher loira de cabelos longos e ondulados, sorrindo para a câmera em um fundo escuro. Ela veste uma blusa preta com ombreiras brilhantes de lantejoulas. A iluminação destaca seu rosto e cabelo, criando um contraste com o fundo preto, dando um ar de retrato artístico.
A peça Carne de Segunda esteve, em março, no palco do CCJF

"Sou quando estou nas manifestações coletivas nas ruas, e canto: “Companheira, me ajuda, que eu não posso andar só. Eu sozinha ando bem, mas com você ando melhor.” Esmorecer não é verbo que me constitui."

 

Carne de Segunda é um espetáculo de teatro idealizado, produzido e protagonizado por uma mulher, Tatjana Vereza, escrito por outra mulher, Marina Monteiro e dirigido também por uma mulher, Natasha Corbelino, eu, neste momento praticando meu traço de testemunho com nossa peça que esteve na programação deste tão querido Centro Cultural Justiça Federal, em março de 2025: Mulheres em Cena. Nós três somos mulheres cis. Eu, cis e branca, tenho buscando começos de escrita que racializam meu risco. É desta musculatura que encaminho a vocês minhas palavras encarnadas.

 

Houve, abrindo esta conversa, uma pergunta que nos foi endereçada:

 

Resistência feminina: é possível furar a bolha conservadora intrínseca em uma sociedade que ainda não consegue garantir as mesmas premissas para homens e mulheres?

 

Estou em um dia distante da poética que minha própria direção trabalha no espetáculo. Volto à plasticidade da cena. Em Carne de Segunda, a personagem é uma açougueira, que inventa sua profissão como modo de produção e criação de corte e caminho para as violências que despedaçam seu campo de batalha, digo, seu corpo de mulher. Na direção, busquei alguma plasticidade encarnada com uma massa que desdobra a ocupação desse corpo na palavra e busca aumentar a convivência da cena com o público. É uma peça que se pesquisa a cada nova temporada. Aqui fizemos a quarta. E eu agradeço pelo espaço que fez nossa carne brilhar e seguir em ato. Viva! Porém, hoje aceito a distância que estou da nossa poética de palco, e me autorizo a responder que não, não é possível furar o conservadorismo que aprisiona e menospreza os recortes de gênero. 

 

Sou uma pessoa propositiva e da ação, sou uma artista mulher focada em criar pulsão de Vida a partir da Obra, me posiciono com uma peça na engrenagem dos movimentos que causam saúde coletiva. Sou um ato de continuidade na insistência pela linguagem, uma pesquisadora da estética singular das lutas. Sou quando estou nas manifestações coletivas nas ruas, e canto: “Companheira, me ajuda, que eu não posso andar só. Eu sozinha ando bem, mas com você ando melhor.” Esmorecer não é verbo que me constitui. Sou uma celebrante do sim. Por isso, hoje escolho responder não à pergunta no campo dos direitos das mulheres, das “mulheridades”. 

 

Uma pausa para olhar em volta as notícias e dados e para olhar de volta a pergunta feita e encontro a palavra que me pegou pela mão até o não respondido: intrínseca. Fui ao dicionário, e é isso mesmo. A palavra é bonita, mas onde está afirma meu não. Há algo que segue inevitável no acontecimento das violências de gênero, que não se esvai, o gesto brutal imposto pela existência do patriarcado permanece fixo no seu interior, como essência da sociedade, como essa autocentrada fundação desmoronada que ainda assina, e/ou assassina, o nome de quem pode seguir viva para receber perguntas. 

 

Com a pergunta perguntando, hoje escolho o não como marcador, porque não é não e porque é para o sim que tento meticulosamente criar possibilidades seguras e felizes a cada passo, respeitar o sim que cada não urgente tem que apagar. E o sim somos nós, mulheres presentes em movimentos plurais, mulheres vivas. É do sim que veio antes, que está e que virá que nossa constituição se faz. Posicionado o não, podemos ser nós mesmas o SIM da pergunta, a festa que desenha na cidade nosso corpo coletivo e de vastidões, em expansão ao longo da História, com as políticas de tantas lutas coreografando nossos protagonismos. 

 

Escrevo no dia primeiro de abril, dia da mentira, também marco de uma verdade rascante na História do Brasil, que começou ainda ontem, há 61 anos, no dia 31 de março, mês da mulher: o Golpe de 1964.

 

@natashacorbelino