Para além do que se vê: a pintura quântica de César Oiticica Filho no CCJF
O ano era 2000, quando o então fotojornalista César Oiticica Filho começou a pesquisar e experimentar uma mescla inusitada de materiais e diferentes meios: inicialmente trabalhando a cor através da fotografia, percebe ao longo dos estudos que isso o colocaria em um diálogo direto com a pintura, articulando cor e luz. Daí, nasce o que o artista batizou como técnica de "pintura quântica”, que mistura impressão fotográfica em tecido e telas com a pintura. Essa é a trajetória seguida pelo artista visual para chegar à mostra inédita Espaços Quânticos, que ocupa atualmente parte das galerias de exposições do Centro Cultural Justiça Federal (CCJF), no 1º andar.
Ele conta que mais do que montar um ambiente criativo de produção, se utilizando de mantras e artifícios para alcançar um nível de consciência mais elevado, imaginou criar espaços quânticos em que o espectador se envolve com as obras não apenas pela cor, forma etc., mas também por outras esferas mentais para além da estética. Sobre o efeito do negativo fotográfico que traz uma inversão de cores da imagem real, César levanta uma discussão filosófica na qual “o que a gente vê não é a essência da cor, mas sim o que ela reflete”. Abaixo, uma conversa com ele sobre carreira, inspirações para o trabalho e outros detalhes sobre a produção de suas obras:
CCJF: Como foi o processo de criação da exposição Espaços Quânticos. Nos conte um pouco sobre a relação desse tema com sua carreira, por favor.
César Oiticica Filho: Antes de começar neste mundo de luzes, pintura e fotografia no ano 2000, o foco do meu trabalho era fotografia. Comecei na fotografia aos 13 anos, em um curso dado pelo Andreas Valentim, em Manaus. Eu morava lá. Meus pais tinham ido trabalhar na cidade. Minha primeira exposição de fotografia foi aos 16 anos, no teatro Amazonas. E trabalhei muito tempo como fotojornalista, inclusive no Jornal do Brasil. E quando eu venho para assumir a curadoria do Centro Municipal de Artes Hélio Oiticica, no Rio de Janeiro, no final de 1997, eu comecei a trabalhar em uma série. Na época, o local, ali na Praça Tiradentes, era um espaço cuja prostituição era bem presente. E começo a fazer um trabalho com as mulheres que estavam ali trabalhando, senti essa cena, uma essência underground, com aquela arquitetura do local maravilhosa. Usava uma técnica, muito utilizada pelo pessoal da área de marketing, que era o light painting, até utilizada por Picasso, na época que ele fazia aqueles desenhos no escuro. Mas minha questão era cor, era fotografia colorida, usava muito laser point, experimentava isso. Quis fazer uma paleta de cores, e não apenas preto e branco.
O laser ‘rasgava’ a imagem. E no final dessa série, fui trazendo muitos detalhes nas obras, a bolsa das mulheres, a arquitetura do local…e percebi que tudo estava ficando meio abstrato. Ao mesmo tempo se aproximava o fim da fotografia analógica, já que a fotografia digital estava avançando rápido. Com isso, eu pensei: ‘se eu vou cair para o abstrato, eu vou experimentar fazer meu trabalho direto na mídia fotográfica, no papel, na película, sem utilizar a câmera, com a lanterna direto no papel, uma pintura com luz, de fato. E assim, foi. Havia um amigo que tinha um laboratório em São Paulo, eu disse que queria fazer isso e ele disse que eu estava doido, que ia ‘velar’ tudo. Lembro que disse a ele: ‘vamos fazer o seguinte, me dá 10 folhas de papel fotográfico, eu levo para casa, vou para um quarto escuro e uso minhas lanternas. Se der errado, te pago o papel gasto e pronto, agora se der certo, você vai bancar essa minha experiência, ok?’. E aí deu super certo, lembro que havia um laboratório de fotografia grande em São Paulo, o Paparazzi, ele tinha adotado a escola da frente e o muro virou uma grande galeria, uma vitrine gigante. Com isso, eu saí da escala, eu não tinha mais negativo e peguei um rolo de papel, e, utilizando uma caixa de vácuo, joguei na parede e pintava ali mesmo, ao som de uma boa música…eu tinha uma relação com a música e dança. Era uma coisa bem fluída, quase um grafite. Eu usava lanternas, modifiquei algumas colocando filtros de cores, além de lasers, para fazer esse efeito mais ‘rasgando’ o papel. Era um efeito forte e pontual.
CCJF: E como é essa relação do papel fotográfico que você utiliza com a arte que produz?
CF: É algo muito louco, pois há uma discussão, até filosófica, que diz que o resultado acaba sendo sempre o contrário. É sobre a percepção da cor, do contraste. Na obra, o que a gente vê não é a essência da cor, mas sim o que ela reflete, o que o objeto reflete. Então, o papel negativo faz essa brincadeira. O desenvolvimento disso depois foi para os cromos, que são os diapositivos, slides grandes. Pensava muito nisso, e era difícil arrumar o material por conta do fim da fotografia analógica. Isso já era o ano de 2010. Daí, consegui alguns por aqui, outros quando viajei para Nova Iorque e tive oportunidade de com o resultado desse trabalho fazer uma exposição no CCJF, em 2011. Então, soltei esses cromos, fiz todos monocromáticos, em homenagem ao meu tio Hélio Oiticica que costumava em suas obras fazer esses núcleos, uma espécie de pintura. Quis fazer um núcleo que chamei de pintura quântica, que é a mistura de cores por meio das luzes. Há fontes de luz e quando um feixe fica na frente do outro, vai mudando a cor. Mostro esse processo em um vídeo que passa aqui na exposição no CCJF.
Na pandemia, eu experimentando coisas, pois não podíamos sair, lembrei desses cromos dentro de casa. Peguei-os, os joguei em uma mesa de luz gigante e comecei a experimentá-los sobre ela. O resultado é esse trabalho que está na mostra Espaços Quânticos. Um amigo imprimiu as imagens, trouxe para a ArtRio (Feira de Arte do Rio de Janeiro) uma parte dessa série e aí me dei conta do seguinte: hoje, quando você imprime uma fotografia digital, não é mais em um papel fotográfico e sim em uma emulsão fotográfica, vira pigmento sobre alguma coisa. Por exemplo, pigmento sobre papel de algodão, pigmento mineral, pigmento sobre tecido, sobre tela. Então, hoje ela está muito mais perto da pintura ou gravura do que da fotografia. Quando me dei conta disso resolvi propor esse encontro da pintura quântica — que não é mais mídia fotográfica — com a pintura pigmentar. A partir daí surgiram esses trabalhos que o público pode conferir na exposição. Isso também permite explorar os materiais, ampliar as imagens e criar esses espaços.
CCJF: Qual a expectativa quanto a receptividade do público do CCJF com relação a mostra Espaços Quânticos, que ocupa as galerias do Centro Cultural até fevereiro de 2025?
CF: Nessa instalação, quando falo de perspectiva quântica, não digo apenas sobre aquilo que a gente vê. Há 18 anos sou praticante de yoga, há 8 anos sou instrutor, faço uns workshops de vez em quando. Aqui dentro deste espaço quero trazer essa experiência para o público de sentir a parte quântica, invisível. Há vento (ar), cheiro...essas sensações dialogam de forma semelhante quando pensamos em cor e luz. Não costumamos pensar muito na luz, só quando ela por alguma razão acaba. Em contrapartida, com a cor percebemos mais a luz. O cheiro, vento, ou seja, o que não vemos deixa essa concepção quântica mais interessante. Essa mistura de sensações é que quero proporcionar a quem vem conferir meu trabalho, inclusive, teremos algumas práticas de meditação durante a mostra.