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A Arte de Não-saber e Mais-querer

Por Diogo Bogéa, escritor, filósofo e professor de Filosofia e Psicanálise na Faculdade de Educação da UERJ.
Publicado em:
12/05/2025
Homem de barba cheia e camisa escura fala ao microfone durante uma mesa ou palestra. Ele usa boina preta e camiseta com estampa da lua, gesticulando com a mão esquerda enquanto segura o microfone com a direita. Ao fundo, parede branca e parte de uma tela de projeção são visíveis. A expressão facial é séria e concentrada, indicando envolvimento com o tema abordado.
O escritor palestrou sobre desconstrução e psicanálise em evento realizado no CCJF, em abril.

No dia 04 de fevereiro de 1912, o checo Franz Reichelt colocou à prova sua mais ambiciosa invenção: um traje especial que permitiria aos humanos realizar o sonho do voo. Diante das câmeras e dos olhares atentos das autoridades e do público, Reichelt saltou do último andar da Torre Eiffel, que era então a construção mais alta do mundo.

O traje não funcionou como esperado e apenas apressou a última queda de Reichelt.

Seis anos antes, na mesma Paris, Santos Dumont havia feito o primeiro voo verdadeiramente bem-sucedido do seu 14-bis apelidado “Ave de Rapina” diante de uma eufórica plateia de mais de mil espectadores.

As experimentações de Reichelt e Dumont são marcas de um corpo que não sabe exatamente o que pode e o que deve fazer. Há essa abertura constitutiva, essa falha ou falta na programação biológica. Ou talvez seja essa força transbordante do desejo que não cessa de exigir mais.

O fato é que, seja por não-saber ou por mais-querer, somos condenados (à bênção) ou abençoados (com a condenação) de sermos essencialmente artistas. É essa a minha briga com liberais e marxistas: o humano não é essencialmente “trabalhador” e, sim, essencialmente artista.

Por não-saber e mais-querer somos lançados numa experimentação sem fim. Co-movidos pelo desejo criamos artisticamente mitos e religiões, criamos artisticamente ciências e tecnologias, criamos, artisticamente.

Mas porque esse não-saber e esse mais-querer inquietam e angustiam, criamos também – também artisticamente – padrões, normas, regras, identidades e scripts pré-fabricados que, esquecidos do seu ser-obra-de-arte tentam se vender – ou se impor – como naturalmente dados e universalmente válidos.

Esses padrões tentam garantir, com suposta certeza, que sabem sim o que esse corpo pode e deve fazer e condenam como terrível pecado todo traço do seu mais-querer.

Mas quanto mais se esforçam para se impor, esses padrões normativos revelam, eles próprios, seu próprio mais-querer. E, por tabela, revelam um não-saber mais geral e mais universal que eles próprios: não sabemos o que fazer da vida. Por isso é preciso tanto esforço para impor padrões normativos. Se soubéssemos, isto é, se eles fossem realmente naturalmente dados e universalmente válidos, não precisariam de qualquer esforço para se fazer valer.

Com tanto esforço e investimento, é claro que, no entanto, alguma coisa “cola”. Alguma cara cola em nós como rosto. Algum padrão normativo cola em nós como identidade.

Mas aquele não-saber e aquele mais-querer continuam gritando lá no fundo. Às vezes muito alto. Às vezes em profundo silêncio. Eles seguem lá nos lembrando vez por outra que não cabemos em nenhum padrão pré-estabelecido de identidade. Lançados numa experimentação existencial interminável pelo não-saber e pelo mais-querer que nos co-movem, somos, cada um de nós, composições absolutamente singulares de experiências.

A Arte é a chance de expressão dessa singularidade que não cabe no mundo. Que não cabe nos scripts pré-fabricados da sociedade. Que não cabe nas expectativas familiares, na obediência cega aos líderes religiosos, nos projetos políticos pré-estabelecidos.

Por isso meu ideal de Arte é tal como descreveu certa vez Banksy: “A arte deveria confortar os perturbados e perturbar os confortáveis”. Produzir dissonâncias. Estranhamentos. Dar voz àquele não-saber e àquele mais-querer que nos lançaram na experimentação singular da existência. É o que busco também com a Filosofia.