O poder da cultura como vetor de transformação social
"É fundamental fazermos uma reflexão sobre formas de utilizar a arte e a cultura como ferramentas de transformação social, promovendo a democratização do acesso da população feminina encarcerada a diferentes atividades."
Gabriela tinha 28 anos quando foi presa. Diarista, negra, mãe de 3 filhos com idades entre 3 e 10 anos. Cometeu o crime de tráfico de drogas, responsável pelo encarceramento de 54% das mulheres, segundo dados do Sistema Penitenciário Brasileiro de 2022. Na prisão, dividiu a cela com dezenas de mulheres que estavam na mesma situação — vulneráveis, abandonadas à própria sorte. Afinal, sabe-se que o homem, quando é preso, costuma receber a visita da mulher toda semana, que ainda traz comida preferida dele. Já a mulher, quando é presa, não recebe o mesmo tratamento.
Trata-se de uma história fictícia, mas que reflete a realidade de muitas mulheres. O Brasil tem a 3ª maior população feminina encarcerada do mundo, segundo levantamento do World Female Imprisonment List. Em 2022, eram mais de 40 mil mulheres e meninas presas em regime provisório ou condenadas, sendo 62% mulheres negras, de acordo com o Ministério da Justiça e Segurança Pública.
Por isso, é fundamental fazermos uma reflexão sobre formas de utilizar a arte e a cultura como ferramentas de transformação social, promovendo a democratização do acesso da população feminina encarcerada a diferentes atividades. Tal abordagem requer um olhar específico, direcionado a um grupo extremamente vulnerável que, historicamente, é excluído do pensamento em torno das políticas culturais no país. Utilizando como exemplo a atuação do Centro Cultural Justiça Federal (CCJF), trata-se de um equipamento cultural diferenciado por ser integrante da estrutura do Poder Judiciário, estando ligado ao Tribunal Regional Federal 2ª Região. Dentro do escopo dos projetos desenvolvidos, a maioria acontece dentro da instituição. Em 2023, o CCJF rompeu os muros que o separam das ruas e iniciou uma série de ações visando dialogar com públicos que têm pouco ou nenhum acesso a espaços culturais.
Uma delas é o projeto LibertArte, que leva sessões de cinema e atividades de corpo a dois presídios femininos da cidade do Rio de Janeiro, Talavera Bruce e Oscar Stevenson. Ele é fruto de um acordo de cooperação inédito assinado entre o CCJF e a Secretaria de Estado de Administração Penitenciária do Rio de Janeiro (SEAP RJ). A curadoria e produção dos cineclubes é realizada em parceria com a Mostra Geração do Festival do Rio, e o projeto de dança Corpo, Gesto e Afeto, com professoras da UFRJ e da UFF.
Apesar de recente, os resultados do projeto já são visíveis nos depoimentos das participantes. Uma delas declarou que a dança sempre a “ajudou a lidar com a depressão e ansiedade”; outra disse que “a iniciativa é libertadora para o corpo e a mente”. Além de democratizar o acesso à arte e cultura, espera-se que essas atividades funcionem, inclusive, como um possível caminho de reinserção no mercado de trabalho, afinal são muitas as oportunidades de atuação nesse setor.
Os direitos e condições para a criação e fruição cultural por grupos vulneráveis são conquistas a serem alcançadas aos poucos. É uma pauta na qual gestores e instituições culturais podem (e devem) assumir o protagonismo. Desta forma, acreditamos que justiça e cultura devem caminhar juntas, contribuindo para a construção de uma sociedade mais democrática e inclusiva.