
FID:RIO e o desejo de escutar o mundo

"A potência do documentário autoral reside justamente em sua capacidade de transformar uma experiência pessoal em questão coletiva. Quando uma história íntima encontra forma, ela pode se tornar política. Mas, para isso, é preciso partir de uma motivação clara: o que se quer contar? E, mais importante, por que se quer contar?"
O cinema de não ficção contemporâneo vive um momento de reconfiguração radical. Longe da ideia de “registro da realidade”, ele se afirma enquanto linguagem que interpreta, inventa e tensiona o mundo. Foi a partir dessa compreensão que nasceu o FID:RIO — Festival Internacional de Cinema de Não Ficção do Rio de Janeiro —, um espaço voltado à exibição e ao desenvolvimento de filmes autorais que rompem com os formatos estabelecidos e investigam outras formas de narrar.
A primeira edição, realizada em maio de 2025 no Centro Cultural Justiça Federal, teve como eixo curatorial o tema “Fricções do Desejo”, reunindo obras que colocam em choque o íntimo e o político, a forma e o conteúdo, o corpo e a linguagem. O desejo, entendido aqui como força motriz da criação, atravessou não só os filmes exibidos, mas também os encontros e debates que ocuparam o espaço durante todo o festival.
A potência do documentário autoral reside justamente em sua capacidade de transformar uma experiência pessoal em questão coletiva. Quando uma história íntima encontra forma, ela pode se tornar política. Mas, para isso, é preciso partir de uma motivação clara: o que se quer contar? E, mais importante, por que se quer contar? O desejo de narrar nasce de um afeto — uma ausência, uma perda, uma inquietação — e é esse desejo que guia todas as escolhas de linguagem. É nesse momento que o filme se torna um gesto.
Os filmes apresentados no FID:RIO demonstraram que, hoje, muitas vezes é preciso inventar a realidade para que ela seja compreendida. Vivemos em uma época em que a realidade, enquanto valor de verdade, está em ruínas. Tudo pode ser manipulado, tudo pode ser mentira. O lugar do real está em disputa — nas imagens, nas narrativas públicas, nos discursos de poder. E, nesse cenário, o mais político pode ser justamente o mais ficcional. Porque rompe com o consenso, desafia a noção de verdade como algo dado e devolve ao espectador a dúvida, a fricção, o estranhamento.
Nesse contexto, a autoficção não é mentira. Não se trata de enganar, mas de construir uma verdade subjetiva — emocional, sensível, política — por meio da invenção. Ela é uma ferramenta legítima e potente para acessar e revelar verdades profundas, que escapam à objetividade dos fatos, mas definem quem somos. A verdade do cinema de autor não está na fidelidade ao acontecimento, mas na honestidade do gesto. O real habita uma falha, um silêncio, um desvio — e é nesse terreno instável que o documentário contemporâneo caminha com mais liberdade.
A maneira de contar a história — o ritmo, a câmera, a montagem, a presença ou ausência do autor — faz com que o tema nos atravesse e se torne nosso. E isso é fundamental no cinema de não ficção independente: provocar no espectador um reconhecimento afetivo, uma experiência sensível, estética e ética.
Foi com esse espírito que nasceu o laboratório #LINK:RIO, realizado em paralelo ao festival. Nove projetos documentais foram acompanhados ao longo de quatro dias de tutorias intensivas. Mas as tutorias não foram apenas exercícios de análise estrutural ou narrativa — elas foram percursos íntimos. Em cada projeto, a pergunta que mais importava era: por que esse filme só pode ser feito por você? E, a partir dessa escuta, surgiam questões de forma, ponto de vista e linguagem.
Em muitos casos, os autores precisaram lidar com o que não está. Como trabalhar a ausência — de uma pessoa, de uma imagem, de uma memória — como presença dramática? Como dar corpo ao que falta? Essa foi uma das descobertas mais férteis do laboratório: contar o que não se pode mostrar. Usar o silêncio como estrutura. Fazer do invisível a espinha dorsal da narrativa. Ao lidar com a ausência, o filme revela algo essencial sobre a experiência humana — e sobre o gesto de filmar.
Em um cenário em que o audiovisual independente enfrenta inúmeros desafios, o FID:RIO e o #LINK:RIO afirmam a importância de políticas de cuidado e risco. Cuidado com o tempo de maturação das ideias. Risco ao acolher narrativas que desafiam formatos, mercados e discursos prontos.
O festival nasce comprometido com uma geração de cineastas que deseja romper com os limites da representação e propor novas formas de olhar para o mundo. Cultivar esse espaço é permitir que o cinema continue sendo, antes de tudo, uma forma de escuta: do outro, de si mesmo, e daquilo que ainda não sabemos nomear, mas que já sentimos.
Nesse gesto, o festival se alinha também à vocação da cidade do Rio de Janeiro como cidade criativa — uma metrópole onde a mistura, a contradição e a invenção fazem parte da paisagem e da cultura. O Rio tem uma longa tradição de experimentação artística e um imaginário próprio que tensiona o visível. Ao unir a força do festival com a potência criativa da cidade, ampliamos as possibilidades do cinema de não ficção como espaço de invenção estética, pensamento crítico e pulsação coletiva.